Valorização Histórica para Tomar: desta minha vila - Carta do Infante D.Henrique

Artigo in Jornal Cidade de Tomar de 23 de Setembro de 2016
por João Amendoeira Peixoto
Este artigo tem por objetivo demonstrar e valorizar a carta mandada escrever pelo Infante D. Henrique, dedicada à população tomarense da sua época.
“Desta minha vila” é assim que o Infante D. Henrique, o Navegador, abraça Tomar nesta sua carta escrita em abril de 1426, presente na obra Monumenta Henricina Volume I, que localiza uma cópia da mesma no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (1) (2)
A presente carta é aqui transcrita e acompanhada por anotações, entre parêntesis, que ajudam na compreensão da mesma.
Este texto de 15 de abril de 1426 é uma prova da visão, proximidade e organização do Infante D. Henrique, assim como, uma importante carta ligada à história de Tomar, pois permite transmitir a riqueza de todo um povoado. A carta do Infante é dirigida a “todos os juízes e homens bons de Tomar” e pretende informar sobre os produtos que devem ser entregues, assim como, os que não devem. (1)
Nesta data, D. Henrique tem 31 anos e é regedor da Ordem de Cristo desde 25 de maio de 1420, nomeado pelo papa administrador geral da Ordem de Cristo a pedido do seu pai D. João I, tendo sido escrita esta carta cerca de onze anos após a conquista de Ceuta a 21 de agosto de 1415. (2) (3)
Estamos perante uma imagem das gentes de Tomar do início do século XV, dada ao trabalho e ao comércio, onde não faltam os lagares, os pastos, as terras de fruto e um Infante cuidadoso.
O príncipe transmite nesta carta, pela mão do escriba João Afonso, a sua preocupação no entendimento das obrigações dos seus habitantes, dirigindo-se também aos cobradores, alertando-os de quais os produtos que não tinham em obrigação a entrega. (1)
Mostra esta carta a atenção do Infante em salientar que lhe apraz que o lavrador não saia lesado, não devendo por isso entregar o melhor do seu produto. Lembra igualmente que os que têm poucas posses, os que têm incapacidade física ou desempenham papéis como servos, entre outras situações específicas, estão livres do pagamento dos ditos dízimos. (1)
Apenas este texto permite transmitir o poder que o Infante detinha sobre a vila de Tomar no século XV, posse da Ordem de Cristo da qual ele é mentor. (2)
Esta carta foi mandada escrever a João Afonso, a pedido do Infante. Este mesmo escrivão o terá acompanhado em mais cartas, ditadas pelo Infante, destacando pelo menos duas em março de 1427 em Viseu, mencionando sempre e da mesma forma: “Johan Afonso a fez”. (1)
É difícil de concluir, mas dada a proximidade com o Infante, para além de escriba será seu homem de confiança para as cartas do reino.
Outros mais elementos com o nome de Johan Afonso surgem durante o tempo da casa senhorial do Infante D. Henrique. (4) No entanto, mesmo sendo um nome comum na época, é de valorizar a proximidade de João Afonso com D. Henrique, e de destacar um outro (ou o mesmo) João Afonso que se julga ser João Afonso de Alenquer, dado num documento terem sido utilizadas as duas formas para a mesma pessoa. Este, por sua vez, esteve com D. João de Avis na crise de 1383-85 que culminou com a Batalha de Aljubarrota, tendo sido contador (encarregado principal de uma contaria) de D. Nuno Álvares Pereira e de acordo com Zurara, foi a pessoa que sugeriu ao Infante D. Henrique e seus irmãos para persuadirem o rei a invadir Ceuta. É igualmente descrito como nobre cavaleiro, tendo sido de acordo com Zurara, um dos principais que se destacaram no assalto a Ceuta. (2) (4)
O valor desta carta mantém-se, independentemente de o escriba João Afonso ser o mesmo João Afonso que tinha as funções de guardião das finanças régias, de vassalo do rei D. João I e interveniente em Ceuta, relembrando que a mesma foi escrita em Tomar e está relacionada com os deveres dos tomarenses. (1) (2) (4)
Quanto a Frei Martim Vasquez, mencionado na carta como comendador é, de acordo com a Monumenta Henricina, o comendador do castelo de Tomar na época. (1)
Como acontecimento militar histórico deste ano, o Infante D. Henrique mandou uma frota comandada por Fernando de Castro composta por 2500 homens e 120 cavalos para conquistar a Grã Canária, mas sem sucesso, pois o nobre Fernando temeu o fim dos mantimentos e desistiu da total investida. (2)
Dada a sua importância histórica considero que este documento a que denomino “Carta do Infante: desta minha vila”, deve estar exibido ao público, assim como, associado a algum tipo de comemoração no dia 15 de abril. Para além do elevado valor histórico que tem para a cidade de Tomar, permite valorizar o papel do Infante D. Henrique naquilo que é a sua visão e organização junto “desta minha vila”.
Sugiro ao Município de Tomar, cidadãos, entidades e grupos ligados à vertente cultural para a valorização desta carta, pois o seu conteúdo é relevante e precioso na história da cidade tomarense, merecendo a sua exposição em local a definir.
Para um melhor detalhe e aproximação do conteúdo da carta, as anotações foram revistas por um profissional, podendo serem realizados melhoramentos.

A “Carta do Infante: desta minha vila” com as respetivas anotações:

15 de Abril de 1426

Eu, o jfante dom Anrique (o Infante Dom Henrique), rregedor da hordem de Noso Senhor Jhesu Christo (regedor da Ordem de Nosso Jesus Cristo) e duque de Uiseu e ssenhor de Cuilhãa (duque de Viseu e senhor da Covilhã), faço saber a uos (todos), juízes e homeens boons (homens bons) desta minha uilla (vila) de Tomar, que esta he (é) a maneira de minha merçee (mercê) he que se tenha em fecto (para que se tenha em afeto/consideração) das promjçias (as primícias/ os produtos da vila) e djzemas (dízimas/rendas/prestações) das mjhuças (miúças/oferendas/obrigações) que se non sujam pagar (que não devem ser pagas), a saber.
Todo aquell que ouuer quoreenta aalqueires de pam de a frey Martim Uaaquez (todo aquele que tiver quarenta alqueires (unidade de medida que varia entre os 13 e os 15 litros) de pão, dê ao Frei Martim Vasquez), comendador dellas (delas), huu alqueire de promojcias (um alqueire de primícias); e esto per esta guissa (e isto por esta maneira): posto que o laurador aia muytas sementes (tendo em conta que o lavrador tem muitas sementes); nom de senon dicto alqueire da milhor semente (não deve dar a sua melhor semente), porque do mais a mjm praz (a mim apraz) que nom seia leuado (que não saia lesado). E, per esta medes guissa, ho dem do uinho. (E, com esta mesma medida, se faz com o vinho.)
E as dízimas asy das mjhuças ajaas destas cousas que sse seguem: (E assim as rendas das obrigações são destas coisas que se seguem:)
Jtem de lãa (de quem tem lã), jtem de queijos, jtem de manteiga, jtem de enxames, jtem de mell, jtem cera, jtem de favas, jtem deruanços (grão?), jtem de tremoços, jtem de alhos, jtem de çebollas, jtem dos mojnhos farinha, jtem das pescarias dos cannaes.
E destas outras ajuso escpritas nom paguem dizimo nehuu (e destas outras que fique escrito que não paguem dizimo nenhum); mais fique rresguardado ao ujgayro que aia as conhoçenças (mais fique resguardado ao vigário que as conhecer), como as sempre ouue (como as sempre conheceu), naquelas em que as auja (haja).
Jtem (de quem tem) chícharos e feijões (feijões) e de todos os outros lagumes (legumes), afora a suso escripta (com exceção dos anteriormente escritos). Jtem de nhua hortaljça (de quem não tem hortaliça), afora a suso escripta (com exceção dos anteriormente escritos); jtem de leite (de quem tem leite), jtem de nhua aues nem ouos (de quem não tem aves nem ovos); jtem dos farregeaaes (de quem tem espigas, cereais), alcáceres (cevada), segados em uerde (ceifados verdes); jtem de nehuuas frutas (de quem não tem frutas); jtem nhuus pastos (de quem não tem pastos); jtem de pensõoes de casas (de quem tem pensões de casas); jtem de gaanços (?) de caualarias (de quem tem cavalariça); jtem soldadas de mancebos (de quem tem criados/de quem paga salários); jtem de fornos de cozer pam (de quem tem fornos de cozer pão); Jtem dos ceços e seruidõoes (de quem é; os que são incapazes/cegos e servos/escravos); jtem de feno e palha (de quem tem feno e palha); Jtem do vjinho (quem trabalha nos vinhos/ quem trabalha as videiras); jtem dos lagares do vjinho (quem tem os lagares do vinho); jtem das pedreiras (de quem tem as pedreiras); jtem das negociações e trabalhos de suas mãaos (quem tem das negociações e trabalhos de suas mãos). E, em testemunho desto, mandey fazer esta carta, asynada per mjm e aselada com ho meu seello. (E em testemunho disto, mandei fazer esta carta, assinada por mim e selada com o meu selo.)
Fecta (Feita) em Tomar, xb dias dabrill. (a 15 dias de Abril.)  Joham Afonso (João Afonso) a fez.
Era do nacimento (nascimento) do Senhor de mjll iiije xxbj anos (1426).
No verso, em letras da época: Das primjcias o concelho tem outra tal, asynada e seelada. (assinada e selada).

Bibliografia:
(1) Monumenta Henricina. Volume I. Coimbra: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique. 1960.
(2)  Russel, Peter. Henrique O Navegador. 1ªEdição. Lisboa: Livros Horizonte. 2016.
(3) Almeida e Cunha MC, Gomes Pimenta MC. A Casa Senhorial do Infante D. Henrique: Organização social e distribuição regional. Revista da Faculdade de Letras. 1984. Pp.221-284.
(4) Saraiva JH. História de Portugal e Dicionário de Personalidade. Quidnovi. Edição e Conteúdos. 2004.

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