Revelações Tomarenses que antecedem a Batalha de Aljubarrota (Parte I)

Artigo in Jornal Cidade de Tomar de 21 de outubro de 2016
por João Amendoeira Peixoto


 Este artigo tem por objetivo, com base no enquadramento de Tomar na crise de 1383-1385, mostrar factos e elementos, pouco conhecidos e que tiveram peso preponderante no desfecho vitorioso na batalha de Aljubarrota, a que aqui denomino de “revelações tomarenses”.
Como enquadramento histórico, o rei de Portugal D. Fernando morre com 37 anos, tendo como única filha legítima D. Beatriz com cerca de 10 anos, em condição de ser esposa do rei de Castela D. Juan I. A viúva D. Leonor toma o poder aclamando reinar em nome da filha e do rei castelhano, elegendo o seu amante galego João Fernando Andeiro como seu consorte e ministro do reino. 
Toda esta situação criou indignação entre toda sociedade portuguesa que levou a diversas revoltas e culminou numa guerra civil. O príncipe D. João de Avis, filho reconhecido de D. Pedro I, como príncipe de Portugal e meio-irmão do falecido rei D. Fernando, invade, a 6 de dezembro de 1383, o Paço do Concelho em Lisboa e mata João Andeiro, sendo D. João aclamado como defensor e regedor do reino. Após saber do ocorrido, D. Leonor pede auxílio ao rei de Castela, que tem em mãos o motivo para invadir Portugal. (1) (2) 
Vários foram os cenários que ocorreram neste período a partir de 1383, que culminou com a Batalha de Aljubarrota em 14 de Agosto de 1385. Tomar surge no centro deste conflito em diferentes momentos, sendo o mais conhecido o encontro, que antecedeu a batalha, das tropas de D. Nuno Álvares Pereira e as de D. João; que após as Cortes de Coimbra em março, foi nomeado rei de Portugal a 6 de abril de 1385, onde João das Regras teve um papel preponderante. (1) (2) 

 Dentro deste contexto histórico as revelações tomarenses a assinalar são as seguintes: 

 1ª Revelação Tomarense: D. Nuno Álvares Pereira sofre uma tentativa de suborno em Tomar

Em abril de 1384 acontece a vitória lusa na Batalha dos Atoleiros, em maio deste ano a frota castelhana chega a Lisboa e o rei de Castela fecha o cerco por terra, enquanto a frota portuguesa defende o norte de Portugal. (3) 
No verão de 1384, um ano antes da Batalha de Aljubarrota, D. Nuno Álvares Pereira esteve em Tomar em diversas situações pontuais, com objetivos específicos. No início de Junho deste ano, a Ordem de Cristo tomou Ourém, com intervenção do Mestre da Ordem. Dias depois, D. Nuno terá realizado uma viagem de Évora para o Porto, passando por Tomar onde almoçou com o Mestre da Ordem de Cristo. Seguiu viagem, e alguns dias depois, quando vinha de Coimbra, voltou novamente a Tomar, seguindo caminho até Torres Novas no sentido de convencer um amigo a se aliar à sua causa, mas sem efeito. Fez nova viagem até Tomar (mês de julho), onde tomou a intenção de avançar até Lisboa, que estava sob ameaça castelhana, no entanto, os conselheiros do Mestre de Avis não apoiaram a investida e D. Nuno segue até Punhete onde é informado sobre um grupo de saqueadores castelhanos que se dirigiam para sul. (3)
 A obra Crónica dos Carmelitas acompanha igualmente este momento e conta um acontecimento ocorrido em Tomar, em que após D. Nuno Álvares Pereira se livrar de uma traição em Coimbra, seguiu para Tomar, onde “foi notória a necessidade de dinheiro”, tendo na altura, a mando de Gonçalo Vasques de Azevedo, um judeu rico “de grande nome” em quem confiava a rainha D. Leonor de Teles e a favor do rei de Castela, apresentado um suborno de cerca de “mil dobras” e “mais lhe foi oferecido”. (4)
 Nesta tentativa de suborno, D. Nuno Álvares Pereira não cedeu e de acordo com a mesma obra terá respondido: “Que lhe agradecia muito (…) mas por agora ainda se podia remediar”. De acordo com a mesma obra, o judeu “ficou tão admirado, como confusos os Autores do estratagema”. (4)
 E aqui aconteceu algo de notável, o Santo Condestável rejeitou uma tentativa de suborno em Tomar por valores avantajados, seguindo depois para o Alentejo onde travou um encontro com os castelhanos do qual saiu vitorioso, onde entre “mortos e prisioneiros; oitenta e seis”. (4)

 2ª Revelação Tomarense: Encontro de D. João I com o cavaleiro William de Montferrant e as suas 40 lanças de gascões 

Junto à capela de São Lourenço, na entrada de Tomar, estão o Padrão de D. João I, um painel de azulejo comemorativo e a Fonte de São Lourenço, dedicados a lembrar eternamente a tão importante união das tropas de D. Nuno Alvares Pereira e de D. João I, que traçou o destino da nação por mãos portuguesas. No entanto, é de destacar um outro encontro em Tomar, anterior a este, de igual importância e praticamente desconhecido. Na obra de José Soares da Silva, é referida uma passagem de D. João I por Tomar, poucas semanas antes da Batalha de Aljubarrota, que vindo de Penela, se encontrou com o cavaleiro gascão de nome João de Monferrate. (5) 
Numa outra obra, sem mencionar o encontro, esta passagem de Coimbra para Penela e depois para Tomar, é situada em Junho de 1385, estando D. João I e Nuno Álvares Pereira em terras nabantinas em finais deste mês (entre 25 e 30 de Junho). (3) 
Os cronistas portugueses referem-se ao cavaleiro gascão como João de Monferrate, no entanto, o cronista Jean Froissart chama-lhe em francês Guilhem de Montferrant (ou Montferrand). (5) (6) A acrescentar que grande parte da informação recolhida por Jean Froissart, como prova o Conde de Vila Franca (1884), foi recolhida ao cavaleiro português João Fernandes Pacheco (1340-1420), que se cruzou com o cronista numa altura da sua vida em que participava em investidas na Prússia sob o comando da Ordem Teutónica. (7) 
O cavaleiro Montferrant é descrito como “o veterano das sete batalhas”, presente nas batalhas de Crécy (1346) e de Poitiers (1356). Na sua estadia em Portugal, terá junto de D. João I elogiado as tropas portuguesas destacando a boa disposição, assim como, demonstrou ter um papel importante no que terá sido a tática para a batalha. (8)
 Os gascões são originários do sudoeste de França, da Gasconha, terra de grandes guerreiros celtas gauleses, de destacar que o Ducado da Gasconha lutou na Batalha de Poitiers (1356) ao lado dos Ingleses contra o Reino da França. (9) 
Desta forma, tal como aconteceu com os portugueses, onde até D. Nuno Álvares Pereira tinha irmãos do lado das tropas de Castela, existiam igualmente franceses dos dois lados das forças. Numa pesquisa que efetuei na base de dados de elementos medievais das armadas inglesas que estiveram em Portugal nesta altura surgem dois elementos com o título de cavaleiro participantes na mesma campanha lusitana, que poderão ser afinal o mesmo indivíduo. Eles são William de Mounferran e William de Montferrant, sendo que apenas o primeiro é assinalado como gascão e o segundo sem origem, dado importante pois coincide com todos os cronistas portugueses no que toca à nacionalidade e ao facto de ser cavaleiro. (10)
 De acordo com o Conde de Vila Franca, com base num documento autêntico, o cavaleiro William de Montferrant, da Gascónia, veio a Portugal com um contrato singular, tendo, de acordo com outra fonte, a de Jean Froissart, se apresentado com um grupo de 40 lanças de gascões. (8)
A utilização de abatises, fossos e covas de lobo na Batalha de Aljubarrota, é a reprodução de um estratagema utilizado pelo exército inglês nas ilhas Britânicas e na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), sendo que Nuno Álvares Pereira aperfeiçoou a sua utilização para a Batalha de Aljubarrota com os veteranos ingleses e gascões. (11) 
Guilherme de Mounferrant está na lista de 54 nomes a quem foi entregue uma carta de proteção pelo rei de Inglaterra e que acompanhariam o Mestre da Ordem de San Thiago a Portugal. Este terá sido um documento que poderá ter apresentado a D. João I no seu encontro em Tomar. (12) Por sua vez, na obra Chronica d´El Rei D. João I, o cronista Fernão Lopes dá-nos uma novidade, que outros ocultam quando recolheram a informação, revelando que em Tomar D. João I encontra “o cavaleiro gascão que chamavam Mosem João de Monferrara” e “el´Rei o recebeu mui bem e lhe fez mercê”. É importante destacar que esta obra foi escrita em 1443, poucos anos após a morte de D. João I, numa altura em que as memórias desses dias estão ainda muito presentes, no entanto, a fonte de Fernão Lopes pode tê-lo induzido em erro no que toca ao nome do cavaleiro. (13) 
O certo é que o cavaleiro Montferrant, que se encontrou em Tomar com D. João I e D. Nuno Álvares Pereira, esteve na batalha de Aljubarrota do dia 14 de Agosto de 1385 na ala direita, onde comandou com Antão Vasquez, 200 lanças, 100 arqueiros, 100 besteiros e 750 peões, num total de 1150 homens onde se encontravam os ingleses e outros estrangeiros. Os seus quarenta gascões deveriam estar nesta mesma ala a seu lado. (5) (7) (14)
 William de Montferrant (ou Mounferran) morreu neste dia no campo de batalha junto de muitos que com ele defenderam a causa lusitana. (7)
 Outros elementos estrangeiros estiveram presentes, com sua passagem por Tomar, no entanto, este cavaleiro gascão destacou-se, provavelmente pela sua personalidade, experiência e conhecimento tático, qualidades que terão sido necessárias na tática portuguesa. 
É difícil de determinar, em qual dos três barcos vindos de Inglaterra, teria vindo a comitiva da Gasconha, dado terem desembarcado separadamente no Porto, em Setúbal e em Lisboa respetivamente. No entanto, após um desembarque aparatoso da nau inglesa em Lisboa, os registos referem que estas tropas aliadas se dirigiram para Évora, o que poderá ser indicador da comitiva de Montferrant ter vindo do norte até Tomar, ou seja, fruto do primeiro desembarque no Porto. (5) (6) (7) 
O encontro com os gascões de Montferrant torna-se assim um momento histórico a valorizar na história de Tomar, dada a importância de conhecimento tático e bravura destes guerreiros de elite alguns deles sobreviventes dos campos de batalha britânicos e da Guerra dos Cem Anos.

(continua)

Bibliografia:
(1) Gomes, Rita. D. Fernando. Temas & Debates. 2009.
(2) Ribeiro, Ângelo. História de Portugal. Volume 2. Coordenação José H. Saraiva. 2003.
(3) Lvsitania Sacra. Nuno Álvares Pereira: a sua cronologia e o seu itinerário. Lisboa. 1960.
(4) Santana, José Pereira de. Crónica dos Carmelitas. 1745.
(5) Silva, José Soares da. Memória para a História de Portugal. Volume 3. 1732.
(6) Russel, Peter. The English intervention in Spain & Portugal in the time of Edward III & Richard II. Clarendon Press. 1955.
(7) Conde de Vila Franca. D. João I e a Aliança Inglesa. Lisboa. 1884.
(8) Memórias da Academia de Ciências de Lisboa. Volumes 16-17. 1975.
(9) https://en.wikipedia.org/wiki/Battle_of_Poitiers
(10) http://medievalsoldier.org
(11) Monteiro, João Gouveia. Aljubarrota Revisitada. Universidade de Coimbra. 2001.
(12) Quadro Elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal (…). J.P. Aillaud. 1853.
(13) Lopes, Fernão. Crónica de El-Rei D. João I. Volume I. Escriptorio. Lisboa. 1897.
(14) Santos, Victor. Campo de Batalha, Lugar de Memória. Volume I. Universidade de Lisboa. 2010.

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