O púlpito de pedra

in Jornal Cidade de Tomar de 20 de Outubro de 2017




"Feitos e Feitios" tem vindo a "redescobrir" e/ou "relembrar" gentes, acontecimentos e elementos que de uma forma ou de outra fazem parte da história da nossa região templária.
Desta vez, venho presencear na obra do padre D. Raphael Bluetau, a existência nos séculos XIV e XV, de uma prática junto à Igreja de Santa Maria dos Olivais destinada aos judeus e que envolvia um Pulpito de Pedra. (1)
No livro "Vocabulário Portuguez e Latino", volume III, publicado em 1713 e oferecido ao rei D.João V, surge a seguinte informação na descrição da palavra "Judiaria": "o bairro donde algum dia viviam e donde hoje em algumas cidades vivem os judeus (...) nas judiarias viviam os judeus em sua lei, conservados com tanta igualdade de justiça", destacando que até o próprio rei D.João I respeitava os seus dias e tradições, como os sábados e na Páscoa; "(...) não pudessem as justiças reais proceder contra eles" e de acordo com o Padre Raphael "o fim destes e doutros favores" tinha por objetivo se "afeiçoarem à nossa fé" e "por ela se mandavam fazer sermões em certos dias, umas vezes nas Sinagogas e outras os mandavam vir aos adros fora das Igrejas".
Dentro deste raciocínio o clérigo dá como exemplo a informação que foi recolhida pelo Doutor Pedro Álvares Seco (século XVI): "indo fazer o tombo da Igreja de Santa Maria dos Olivaes da Villa de Tomar que junto ao alpendre da ditta Igreja havia antigamente um Pulpito de Pedra o qual fervia de fazerem em dias determinados as práticas aos judeos."
Curiosamente a fonte do Padre Raphael é o tomarense Pedro Álvares Seco, o qual já tive a oportunidade de apresentar, no artigo "Redescoberta de Antiga Quinta tomarense: Família Seco e o Mapa do Cardeal Guido Sforza" no Jornal Cidade de Tomar de 2 de dezembro de 2016. (2)
É sem dúvidas mais um curioso dado histórico a ter em consideração, destacando que em Tomar a história diz-nos que aqui houve uma importante comunidade judaica e de que a Sinagoga de Tomar foi construida entre 1430 e 1460. O Infante D.Henrique terá sido o grande promotor para a fixação de judeus na região, a judiaria criada situava-se onde é hoje a rua Dr. Joaquim Jacinto e os judeus tiveram um importante envolvimento na empresa dos Descobrimentos Portugueses. (3)
O conteúdo destes sermões segundo nos conta o padre Raphael destinava-se a uma possível tentativa de aproximação religiosa, ou até, social e cultural, cuja importância é evidente no reinado de D.João I.
Com base nesta informação fiz uma busca entre outras mais obras, tendo encontrado esta informação "quase perdida" em duas outras.
Este mesmo assunto voltou novamente a ser abordado em 1843 num jornal literário de nome “O Panorama”, onde os autores do artigo revelam (queixam-se) que esta informação veio de um documento ao qual não tiveram acesso, o “Tombo da Ordem de Cristo” de “Pedralvares” (sem dúvidas que se referem ao tomarense Pedro Álvares Seco), mas que, no entanto, um conhecido “amigo da gloria nacional (…)”, “patrício da villa de Thomar, que o leu e percorreu”, de nome “Pedro de Roure Pietra” fornece as informações que surgem neste artigo. (4)
Ou seja, estamos provavelmente perante o mesmo documento de onde o Padre Raphael retirou a existência do Púlpito de Pedra, mas o jornal “O Panorama” através do nabantino Pedro de Roure Pietra, consegue ser ainda mais pormenorizado na descrição.
“Um alpendre cobria e guarnecia a entrada principal, segundo o costume daqueles tempos primitivos, em que todas as construções pias eram para comodidade de todo o serviço religioso, e pouco importavam ostentações, nem simetrias de arquitetura. Este alpendre, ou galilé, como lhe chamavam, era destinado a abrigar os pobres e peregrinos que ali se ajuntavam; servia para pregar ao povo em ocasiões de grande concurso; e para administrar justiça, porque ali estava a cadeira ou séda de pedra do alvazil ou juiz, posto pelos freires, senhores da jurisdição civil e criminal do aro dominial, bem como o eram da eclesiástica. O mesmo Tombo consigna outra antigualha muito curiosa, a de haver ali próximo um púlpito exterior donde se pregava não só à multidão quando afluía, mas para que os mouros e judeus conversos pudessem ouvir a doutrina cristã e catequese antes de poderem entrar na igreja pelo batismo e admissão solene ao catolicismo.”
Comparando as duas notícias, fica só a questão temporal em dúvida de quando começou esta prática, pois o padre Raphael refere-se ao tempo de D. João I e esta última notícia situa esta descrição depois de referir que os reis D. Manuel I e D. João III mandaram fazer grandes intervenções na Igreja de Santa Maria do Olival. Relembro que a inquisição chega no reinado manuelino a Portugal em 1496 e, no caso de o mesmo púlpito ser do tempo de D. João I, já teria cerca de cem anos.
O seu fundamento parece ser, de acordo com o que se apresenta, a sua utilização para a conversão dos ouvintes à fé cristã.
A outra obra é a Monarquia Lusitana de 1672, escrita pelo monge de Alcobaça Frei Francisco Brandão, que nos revela: “junto ao alpendre da Igreja Santa Maria dos Olivais da Vila de Tomar haviam umas casas dos Vigários com um púlpito de pedra pela banda de fora, o qual servia em fazerem em dias determinados as práticas ao Judeus e Mouros, como alcançou por informação dos antigos o Doutor Pedro Álvares Seco indo fazer o tombo daquela Igreja nos últimos anos de D. João III.” (5)
Esta mesma obra permite perceber que esses “antigos” serão realmente do tempo de D. João I, tal como demonstra com outras informações presentes que apontam para o seu reinado.
Estas são fortes fontes escritas, de três séculos diferentes, que permitem concluir com solidez que estamos perante uma informação relevante na história dos Judeus de Tomar, com a importância de ser uma prática que decorria junto à Igreja de Santa Maria dos Olivais.


Bibliografia:

(1)   Bluetau, Raphael.  Vocabulário Portuguez e Latino, volume III, 1713.
(2)   Peixoto, João Amendoeira. Redescoberta de Antiga Quinta tomarense e o Mapa do Cardeal Guido Sforza. In Jornal Cidade de Tomar. 02/12/2016.
(3)   http://www.conventocristo.gov.pt/pt/index.php?s=white&pid=238
(4)   Jornal O Panorama, Nº99. 1843.
(5)   Brandão, Francisco. Monarquia Lusitana. Volume 6. 1672.

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