O Cometa de 1596 que inspirou William Shakespeare

in Jornal Cidade de Tomar de 19 de Janeiro de 2018


 Após o Dia dos Reis e no contexto da Estrela que seguiram, trago, desta vez, um diário de navegação de carreira da India de 1596, de um piloto português chamado Gaspar Ferreira Reimão, que pilotou uma nau de Goa até Lisboa chamada São Pantaleão. Ele terá realizado várias viagens ao serviço da coroa filipina, mas esta é especialmente particular. (1)
 No seu diário a informação sobre a navegação é rica e preciosa, com pormenores diversos bem documentados pelos respetivos dias, tal como de um jovem português que recolheram na ilha de Santa Helena, assim como, de um outro momento, que considero fascinante, sobre a troca de novidades no alto mar com uma caravela portuguesa que provinha do Rio de Janeiro. (1) 
Mas o que torna este documento tão importante, no meu olhar, são duas descrições preciosas que o piloto Gaspar Ferreira faz sobre um astro que observa. Na minha opinião o nosso navegador fez uma descoberta, não marítima, mas astral. (1) 
Estamos a falar de um cometa, que o piloto Gaspar identificou corretamente e que terá surgido a 12 ou 13 de Julho, salientando que no dia 17 de Julho é que anotou a identificação do mesmo. Esta observação dos céus era obrigatória, mas é curiosíssima a descrição do piloto e talvez este transbordar da sua enorme curiosidade sobre todo o fascínio que o céu lhe criava. (1) 
“Aos 17 do mês em quarta feira (…) a quatro ou cinco dias que apareceu um cometa a leste e quarta de nordeste e sai das três horas para a manhã tem, é uma estrela de Bom tamanho mas tem pequena cauda e a cabeleira e essa que tem, a tem pela banda de cima: Denos N.S. boa viagem e a virgem do Rosário madre deos” No dia 22 de Julho voltou a documentar o astro: “(…) o cometa que nos apareceu a dias atrás ao nordeste e lesnordeste e vimos hoje ao noroeste e a quarta do norte, com o rabo maior, e mais claro; (…)” 
Após uma pesquisa não encontrei outra anotação ou referencia a este avistamento do piloto Gaspar Ferreira, o que me leva a concluir que estamos perante uma novidade a valorizar sobre o registo e descrição deste astro por parte deste piloto. Só a observação em si, é um tesouro para quem gosta de Astronomia, no meu ver pessoal. (1) 
Fiz nova pesquisa, e quanto ao cometa de 1596, ele foi registado um pouco por todo o mundo, sendo possível encontrar em várias obras a referência ao mesmo durante os meses de Julho e Agosto deste ano. Está presentemente catalogado como o C-1596 N1. (2) 
Uma valiosa obra do cientista norte-americano da atualidade chamado Gary W. Kronk, Cometography Volume I, revela os cometas anteriores a 1799, onde podemos encontrar o astro de 1596. O autor menciona várias obras antigas de origem oriental tais como do Japão, da China e da Coreia, no entanto, considera que os descobridores deste cometa são os coreanos no dia 18 de Julho. (2) Como o leitor pode constatar, o nosso piloto português Gaspar Ferreira, sem saber, fez a descoberta deste astro, ao registar a sua existência no dia 17 de Julho, tendo felizmente anotado o seu avistamento para os dias 12 ou 13. (1) 
Sem pretender dizer quem foi o primeiro ser humano a olhar o céu neste período, este é um descobrimento natural de um homem que cumpria muito bem o seu papel de observador dos céus em local privilegiado e, como tal, merece o seu reconhecimento pelo registo que fez num tempo recorde comparando com os demais. Numa outra pesquisa mais refinada, encontrei um pensador do século XIX, que se debruçou sobre o estudo do cometa de 1845, no próprio ano, defendendo tratar-se de ser o mesmo astro de 1596 através de uma investigação minuciosa que envolveu cálculos, onde faz alusão a outros dois cientistas, facultando a possibilidade de o cometa ter uma elipse com um período de 249 anos. (3) O mesmo investigador de nome J.H. Hind remete a investigação para uma revista onde é apresentada em maior detalhe. Após conseguir aceder à mesma, deparei-me que se baseia num documento presente na Biblioteca de Copenhaga, com as anotações de um tal de Tycho e dos seus assistentes, que apontam para uma primeira observação no dia 14 de Julho à noite. (4) 
Sobre este artigo encontrei apenas um outro, também de 1845, que tenta refutar o pensamento de Hind, e nada mais encontrei sobre este assunto. (5) Esta nova informação é complementar e permite comprovar a observação feita pelo piloto português que apontou para os dias 12 ou 13 o surgimento do astro, devendo destacar que há a possibilidade de o mesmo ter surgido em dias anteriores, dado o nosso navegador ter vindo do hemisfério sul onde o cometa poderia não ser visível. (1) (4) 
Se seguirmos o pensamento J.H. Hind em 1845, o cometa terá visitado o nosso planeta também em 1347, em 1085, e por aí adiante, sempre a subtrair 249 anos até para além da origem da humanidade com a possibilidade deste período temporal ir-se alterando à medida que vamos recuando no tempo. O senhor Hind não fez este jogo, provavelmente por não ter acesso à informação em 1845 que temos atualmente, mas vou fazê-lo com todo o gosto. (4) 
A data de 1347 não poderia correr melhor, pois há registo de um cometa neste ano avistado em Julho e Agosto no hemisfério norte, sendo de acordo com alguns o anunciar da morte de reis. Na realidade este cometa ficou conhecido popularmente como o Cometa da Peste Negra, pois coincide temporalmente com o seu surgimento. (2) (6) (7) Quanto à data de 1085, a obra do cientista Gary W. Kronk refere que há vários documentos que apontam a passagem de um astro entre 1111 e 1085, apontando o mês de Agosto, e revela um texto de 1299, Annales Monasterii de Waverleia, que denuncia um cometa durante a captura de Antioquia em Junho de 1085. Para Kronk esta informação pode não estar correta pois não é contemporânea ao acontecimento, no entanto, aqui no nosso novo olhar coincidem até na estação do ano. (2) 
A título de curiosidade, tanto em 1085 como em 1347, houve momentos de catástrofe e doença, que prediziam para muitos o fim dos tempos e a chegada do Anticristo, assuntos muito comentados na Era Medieval. (6) (7) (8) 
1596, foi um ano revolucionário e, de acordo com alguns, William Shakespeare inspirou-se neste cometa para uma das suas obras, Júlio César publicada em 1599, assim como, foi observado pelo iluminado Galileu Galilei. (2) (9) 
O século que se seguiu foi repleto de luzes e conhecimento. No caso de 1845, aconteceu neste ano o início da praga da batata, que levou, devido à fome e morte, a uma emigração em massa principalmente da Irlanda para os Estados Unidos da América. (2) (10) 
Tudo isto é coincidência pura, mas são factos que mudaram o curso da história da Humanidade, iluminados pela passagem de um astro, destacando que a próxima data a apontar é a de 2094. Este é um assunto que fascina quem gosta de olhar o céu pelo passado, presente e futuro, o guia dos antigos e dos astronautas do futuro, sempre assim foi e será. Aqui fica a contemplação noturna dos homens da nau portuguesa de Gaspar Ferreira Reimão de 1596, a inspiração de William Shakespeare e o pensamento científico do senhor Hind de 1845.


Bibliografia:
(1) Fonseca, Quirino. Diários da Navegação da Carreira da índia nos anos 1595, 1596, 1597, 1600 e 1603. Academia das Ciências de Lisboa. 1938
(2) Kronk, Gary W.. Cometography: Volume 1, Ancient 1799: A Catalog of Comets. Cambridge University Press. 1999.
(3) The London, Edinburgh and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science. Mr. Hind. Página 414-416. 1845.
(4) Astronomische Nachrichten. Página 373. 1846.
(5) Astronomische Nachrichten. Página 386. 1846.
(6) Chronologia dos cometas, que appareceram desde o ano 480. Página 12. 1759.
(7) Bishop, George. The Comet of the Black Dead (Comet Negra 1347).Georgebishopjr.com
(8) Barbara, Frale. The Templars: The Secret History Revealed. Arcade Publishing, Inc. 2009.
(9) Levy, David H. The Starlight. Springer. 2016.
 (10) Keefe, Jack. Survivors of the Irish Great Hunger, 1845-1850. IUniverse Bloomington. 2013.

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