Crónica Feitos & Feitios de João Amendoeira Peixoto in Jornal Cidade de Tomar de 26 de Abril de 2019
“INCONTESTÁVELMENTE SUPERIOR”
Inéditos sobre Fernando Pessoa: As Crónicas de Francisco Peixoto
Bourbon para o Jornal Cidade de Tomar – Parte 3
Peixoto Bourbon, colaborador do Jornal Cidade de
Tomar nos anos 80, conhecido próximo de Fernando Pessoa, deixou-nos um espólio
de informação que hoje em pleno século XXI volta a ganhar luz e alma para os
curiosos sobre o quotidiano do poeta português.
“Só quem
conviveu com Fernando Pessoa pode testemunhar como era descomunal a sua cultura
e estando sempre bem informado sob o ponto de vista filosófico, político,
económico, social e até científico do que se passava no mundo. Para isso
contribuía o facto de além de ser um espírito naturalmente curioso e ávido de saber
o facto de dominar muito bem a língua inglesa e francesa e de ter um poder de
assimilação verdadeiramente invulgar e uma memória prodigiosa. E por isso
muitos diversos que fossem os assuntos que abordava fazia-o de forma elevada e
extremamente brilhante. Era um prazer espiritual ouvi-lo dissertar e patentear
como era um espírito bem aberto a todas as formas de conhecimento desde as mais
sofisticadas até às mais escabrosas.” (1)
Quero alertar o leitor, antes de prosseguir, pois
devo dizer que Bourbon nos irá apresentar Mário de Sá, também conhecido como
Mário de Saa (1893-1971), não devendo confundir com Mário de Sá Carneiro
(1890-1916), já falecido no tempo em que o nosso colaborador participa nas
tertúlias do Café Montanha com Fernando Pessoa. Mário de Saa é um dos grandes
investigadores natos e curiosos da história e cultura portuguesa, de uma
genialidade invulgar com vasta obra literária, onde se destaca uma coleção com
seis volumes «As Grandes Vias da Lusitânia»,
onde Tomar surge no Tomo II apresentada
como Scallabis, assunto muito
controverso apresentando Santarém como Jerabrigam. (2) (3)
Conta Peixoto Bourbon que um dia o Dr. Mário de Sá,
apareceu a Fernando Pessoa com uma lista de rifões, “sentenças populares”, na sua maioria que ele mesmo desconhecia, em
que um dizia: “Por dentro Pão bolorento/
e por fora cordas de viola.” Ao que o Dr. Mário de Sá explicou «por fora tudo são rendas por dentro nem
fraldas tem» ou «que nem tudo o que
luz é oiro». “E explicava mais: o por
dentro pão bolorento significa que é terra e por fora cordas de viola é que no
aspecto exterior, tudo são flores. Cordas quer dizer monte, de onde ainda nos
resta a palavra cordilheira e viola é o sinónimo de flores, de onde ainda
conservamos a palavra violeta. Procuro sintetizar, recorrendo à memória as
explicações que dava mas é óbvio que eram bem mais completas e eruditas e que
já não as saberia reproduzir com a fidelidade devida.” (1)
Nesta complexidade de pensamentos, Bourbon diz-nos
que o Dr. Mário de Sá tinha uma ligação através das palavras com Alentejanos de
Aviz “desde os maiores aos mais íntimos
trabalhadores da enxada”. (1)
E Sá,
carregado de papelada e acabado de chegar de Aviz, perguntou a Peixoto Bourbon
por Pessoa, revelando este a data e hora da reunião no Café Montanha. No dia seguinte,
Sá explica ao que vinha, Pessoa pediu
escusa aos restantes e foi sentar-se a sós com ele numa mesa sozinhos. De
acordo com Peixoto Bourbon os «habituais»
foram indo embora aos poucos, enquanto aqueles dois se mantiveram tempo
infinito. Fernando Pessoa retirou-se igualmente, tendo Bourbon convidado Mário
de Sá para um jantar no Hotel de
França, junto à praça de S. Paulo, onde se encontrava hospedado. O investigador
Sá aceitou e pelo caminho ia murmurando «Aquele
bruxo é uma enciclopédia viva.» (1)
“E na verdade,
além da sua vastíssima cultura era, sem sombra de dúvidas, um dos espíritos
mais lúcidos e mais penetrante que me foi dado conhecer e tive a dita de
privar, com certa intimidade, com pessoas de rara craveira intelectual como: um
Dr. Eugénio de Castro, um Alfredo Pimenta, um Hipólito Raposo, um Almeida
Braga, um Afonso Lucas, etc, etc…” (1)
Peixoto Bourbon questiona-se sobre como seria se
Fernando Pessoa se tivesse mantido vivo, o que teria pensado sobre as
alucinantes conquistas da ciência, os aviões, os mísseis, o crime, as bombas
atómicas. “Que missão lhe estaria
reservada?” Por outro lado, considera que talvez tenha sido melhor assim,
não assistindo às atrocidades de Hiroshima e Nagasachi, que por certo o teriam
feito sofre “pois era portador de grande
delicadeza de sentimentos.” (1)
“E a propósito
direi que li recentemente que Hilaire Belac teria definido os Estados Unidos da
América do Norte como sendo um país que passou de barbárie para a decadência
sem ter conhecido a civilização. E o curioso (…) já tinha ouvido semelhante
definição há cerca de cinquenta anos a Fernando Pessoa.”. (1)
Este pensamento entre outros podem ser revelados,
segundo Bourbon por outro elemento ainda vivo desse tem, o Dr. Manuel de
Vasconcelos que poderia levar a efeito muitas revelações inéditas sobre
Fernando Pessoa pois foi seu íntimo amigo, ajudando assim a combater alguns
mitos que se criam em torno do poeta português Pessoa. (1)
Com Fernando Pessoa “Nada soava a chôco como por vezes se sucedia com outros «chameurs» ou
cavaqueadores de grande notoriedade na época. Acresce que Fernando Pessoa era
muito bem educado e nunca proferia brutalidade e embora fosse, por vezes bem
malicioso, raro descia ao sarcasmo e nunca à perfídia. Foi como que um dos
últimos exemplares de um homem verdadeiramente civilizado e incontestavelmente
superior.” (1)
Para Francisco Peixoto Bourbon tudo era exposto “com uma graça e uma serenidade deliciosas
em que o verdadeiro e o falso, o falso e o difícil, a doçura e a dureza não
raro se alternavam por forma mágica e sedutora.” (1)
Devo
acrescentar de que Mário de Saa era também ele um ser “incontestavelmente superior” de quem Pessoa tinha uma admiração e
respeito enormes, talvez, quem sabe, uma inspiração para um dos seus
heterónimos.
(CONTINUA)
Bibliografia:
(1) Bourbon, Francisco Peixoto. A
abusiva apropriação de Fernando Pessoa. Jornal
Cidade de Tomar IV. 03/04/1980.
(2) https://pt.wikipedia.org/wiki/Mário_Saa
(3) Saa, Mário. As Grandes Vias
da Lusitânia (1959). Tomo II. Lisboa.
*Fotografia de Mário
de Saa
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